O que partilhamos nas redes será privado? Se um trabalhador criticar a empresa ou colegas de trabalho no Facebook, no Instagram ou no WhatsApp, será opinião pessoal ou motivo de procedimento disciplinar?
Será diferente se uma mensagem, comentário, publicação ou história for realizada durante ou fora do horário de trabalho? E se quem o faz tiver um perfil “privado”?
Estas perguntas são cada vez mais frequentes e expõem uma realidade incontornável: o digital não tem fronteiras claras entre o pessoal e o profissional. E é precisamente neste espaço ambíguo que surgem os maiores desafios para empresas, equipas e lideranças. Desafios que surgem também no mundo jurídico, onde se tentam responder a estas questões, sem que haja uma posição unânime.
Lealdade para além do horário de trabalho
A ideia de que a vida privada é independente do trabalho é, hoje, insustentável. Tal não significa que o empregador se possa intrometer na intimidade do trabalhador, mas significa, sim, que a liberdade de expressão e a vida pessoal têm de conviver com os deveres profissionais. Entre eles, destacam-se os deveres de urbanidade, probidade e, sobretudo, lealdade.
Este último, que é recíproco, estende-se para além do horário laboral. Este dever de lealdade traduz uma relação de confiança entre empregador e trabalhador que se norteia pelo princípio da boa-fé. Tem que ver com a essência do vínculo contratual, motivo pelo qual vai além do horário e local de prestação do trabalho.
A forma como um trabalhador se expressa nas redes sociais sobre a entidade empregadora, ou vice-versa, pode colocar em causa essa relação de confiança. E sim, em última instância, pode culminar num despedimento com justa causa (por iniciativa do empregador ou do trabalhador, consoante os cenários).
Privacidade digital: mito ou realidade?
Grande parte do que somos e pensamos vive hoje nas redes sociais.
Não é fácil definir em que consistem as redes sociais, mas têm-se identificado as seguintes características: são plataformas digitais onde se criam vínculos/relacionamentos, existe uma flexibilidade tal que se fazem e desfazem rapidamente conexões, há muita interação e partilha, incluindo possibilidade de editar conteúdos, há uma expansão contínua onde um utilizador convida outro, que por sua vez convida outro, e assim sucessivamente, e há insegurança, na medida em que as informações partilhadas (incluindo de caráter pessoal) podem ser disseminadas com um simples click.
Considerando estas características, não podemos colocar em pé de igualdade os amigos virtuais e os amigos reais. Foi realizado um estudo onde se criou um perfil falso com a imagem de um sapo, sem mais nenhuma informação, e se efetuaram 200 pedidos de amizade, dos quais 87 foram aceites e, desses, 82 utilizadores cederam informações pessoais.
Então, haverá ou não privacidade nas redes sociais? Depende. Para responder a esta questão, devemos ter em conta a expectativa do utilizador e, para isso, devemos apurar se o perfil/conta é público ou privado e, independentemente disso, é importante analisar a quantidade e a qualidade dos “amigos”. Há potencial de disseminação?
Quando o caso chega a tribunal
Os tribunais portugueses já têm vindo a decidir sobre estes temas e colocam-se questões como:
» e se um trabalhador partilhar um meme ofensivo para a sua equipa?
» e se sugerir que trabalha com incompetentes?
» e se insinuar algo sobre a liderança, sem referência direta?
» e se partilhar uma opinião polémica que afete a imagem da empresa, mesmo sem a mencionar?
Ao analisar diversas decisões, é possível identificar que os tribunais têm considerado:
» o grau de exposição (perfil público vs. privado – sem prejuízo de perfis formalmente privados poderem não ser assim considerados atendendo à quantidade e qualidade de “amigos”);
» a referência ou a falta dela à entidade empregadora (explícita ou não);
» o conteúdo em si (mais ou menos ofensivo).
Em regra, publicações públicas que identificam a empresa ou a colocam em causa, são sancionadas. Mas nem sempre. Há decisões judiciais que não seguiram este padrão e desvalorizaram o impacto da exposição, mesmo quando havia claramente um comprometimento da relação de confiança. Tendo a discordar destas decisões porque defendo que uma comunicação potencialmente danosa, acessível, que mine a credibilidade da empresa ou das suas lideranças deve ter relevância disciplinar, mesmo que não mencione nomes ou que tenha sido apagada e/ou editada.
Publicar é fácil. Julgar, nem sempre
A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm apontado três grandes posições. Há quem defenda que qualquer comportamento (ainda que digital) que abale a confiança estabelecida na relação laboral pode justificar um procedimento disciplinar. Outros defendem que é necessário que esse comportamento represente um perigo sério e concreto de violação dos deveres profissionais importantes. E há quem exija que esse comportamento crie, como consequência direta, danos.
A solução intermédia parece-me a mais ajustada: não devemos exigir um dano efetivo, nem sancionar sem que haja um risco sério. Um comportamento, real ou digital, durante ou fora do local e horário de trabalho, que viole um dever profissional importante ou que represente um sério risco dessa violação, deve ser sancionado. Mensagens num grupo de WhatsApp onde há uma espécie de bullying a um colega.
Uma publicação que ponha em causa a imagem da empresa. Um trabalhador que se filme a atender clientes, fazendo “piadas”. Todos estes comportamentos são passíveis de ser sancionados, naturalmente após investigação em sede de procedimento disciplinar. Tudo isto são exemplos para os quais a lei não prevê respostas concretas, mas onde é possível aplicar o poder disciplinar, investigar e eventualmente sancionar.
Da prevenção à sanção
A melhor forma de evitar conflitos é prevenindo-os. Defendo que as empresas devem investir em regulamentos internos que abordem especificamente o uso das redes sociais e equipamentos tecnológicos, definindo concretamente o que é permitido e o que é proibido. Para além de ser uma excelente técnica de uniformização e auxílio de gestão, é também muito útil para todos os trabalhadores, porque clarifica expectativas, reduz incertezas e promove maior segurança e confiança no desempenho diário.
A formação e sensibilização das equipas para estas questões assume aqui um papel fulcral, pois é neste contexto que se descomplica o juridiquês, se esclarecem dúvidas concretas e se analisam casos reais de forma prática e acessível. É aqui que os trabalhadores ganham verdadeira consciência do impacto das suas ações e motivação para agir com responsabilidade.
Ainda assim, há situações que justificam a instauração de procedimentos disciplinares. E as empresas não devem ter medo de agir. Quando isso acontece, o procedimento deve ser conduzido com acompanhamento jurídico desde o primeiro momento, garantindo a recolha adequada de prova, até para proteção na hipótese de o caso “continuar” nos tribunais. Esta realidade digital é ainda recente para muitas empresas, mas é urgente acompanhá-la com rigor, respeito e segurança.
Nem tudo justifica sanção, mas alguns comportamentos extralaborais têm impacto real no ambiente de trabalho, na liderança e na imagem das empresas. Reconhecer essa realidade é o primeiro passo para saber agir sem exagero e sem permissividade. Com equilíbrio e consciência.
A nossa pegada digital tem cada vez mais importância no nosso trabalho. Liderar e representar uma empresa acontece em cada click. Reconhecer isto é o primeiro passo para criar organizações fortes, justas e alinhadas com os valores que realmente importam.